quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

a sombra da pessoa. Beguidro, Madagáscar


A Sombra da Pessoa

(...) Uma pessoa não está... nítida e imóvel diante dos nossos olhos, com as suas qualidades, os seus defeitos, os seus projectos, as suas intenções para connosco (como um jardim que contemplamos, com todos os seus canteiros, através de um gradil), mas é uma sombra em que não podemos jamais penetrar, para a qual não existe conhecimento directo, a cujo respeito formamos inúmeras crenças, com auxílio de palavras e até de actos, palavras e actos que só nos fornecem informações insuficientes e aliás contraditórias, uma sombra onde podemos alternadamente imaginar, com a mesma verosimilhança, que brilham o ódio e o amor.

Marcel Proust, in 'O Caminho de Guermantes'

terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

vaidade. Opera House, Sydney, Austrália


Cheguei à firme convicção de que a vaidade é a base de tudo, e de que finalmente o que chamamos de consciência é apenas a vaidade interior.

Gustave Flaubert

"mãos ao ar". Lago Tana, Etiópia


Com mãos se faz a paz se faz a guerra
Com mãos tudo se faz e se desfaz
Com mãos se faz o poema ─ e são de terra.
Com mãos se faz a guerra ─ e são a paz.

Com mãos se rasga o mar. Com mãos se lavra.
Não são de pedra estas casas mas
de mãos. E estão no fruto e na palavra
as mãos que são o canto e são as armas.

E cravam-se no Tempo como farpas
as mãos que vês nas coisas transformadas.
Folhas que vão no vento: verdes harpas.

De mãos é cada flor cada cidade.
Ninguém pode vencer estas espadas:
nas tuas mãos começa a liberdade.

Manuel Alegre
o canto e as armas

avô e neta. Backwaters, Kerala, India


A liberdade é a possibilidade do isolamento. Se te é impossível viver só, nasceste escravo.

Fernando Pessoa in "O Livro do Desassossego"

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

Madrassa-Ye Khan, Shiraz, Irão


(...) só o sofrimento deixa cicatrizes, a felicidade desvanece-se sem deixar marcas.

Afonso Cruz in "Nem Todas as Baleias Voam"

tecelão, Dorze, Etiópia


Produzir tédio

O trabalhador que muitos patrões desejam é uma espécie de máquina que é tratada como máquina. O resultado (...) são pessoas que produzem coisas que não lhes interessam, trabalhando no mesmo espaço com pessoas que não lhes interessam, e quando não estão a produzir coisas que não lhes interessam com pessoas que não lhes interessam, estão a consumir coisas que não lhes interessam produzidas por pessoas como elas. Produzimos o tédio, durante oito horas por dia, para podermos comprar um tédio semelhante ao que produzimos naquelas horas. E, ainda assim, raramente temos tempo para usufruir do tédio das coisas enfadonhas que compramos. Muito por culpa, evidentemente, das horas que passamos a produzir esse mesmo tédio.

Afonso Cruz in "Jalan Jalan"

Namasté, India.


Não indagueis o nome do que vos pede pousada. Aquele que precisa de ocultar o seu nome é quem mais carece de asilo.

Victor Hugo in "Os Miseráveis"

terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

arroz para plantar. Manandona, Madagáscar


Os loucos arriscam-se onde os anjos receiam pisar

C. J. Tudor in "O Homem de Giz"

viagem em Marrocos. Medina de Fez


A viagem é uma ponte para o desconhecido. Um encontro com um olhar estrangeiro, um olhar onde, afinal, fulge a mesma ânsia e que é turvado pelos mesmos medos que o nosso próprio olhar... Por um instante, é como se fossemos nós, do outro lado do espelho

´Pedro Mota in Prefácio de "Jalan Jalan" de Afonso Cruz

retrato, Gondar. Etiópia


O segredo está na capacidade pulmonar. A vida é a retenção da respiração da alma. Inspira, mergulha, volta à superficie, é isso.

Afonso Cruz in "Nem Todas as Baleias Voam"

cão silencioso, Istambul


Desconfia das águas silenciosas, dos cães silenciosos, do inimigo silencioso.


Valter Hugo Mãe in "Homens Imprudentemente Poéticos"

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018

sorriso audível das folhas. Luang Prabang, Laos



Sorriso Audível das Folhas

Sorriso audível das folhas 
Não és mais que a brisa ali 
Se eu te olho e tu me olhas, 
Quem primeiro é que sorri? 
O primeiro a sorrir ri. 

Ri e olha de repente 
Para fins de não olhar 
Para onde nas folhas sente 
O som do vento a passar 
Tudo é vento e disfarçar. 

Mas o olhar, de estar olhando 
Onde não olha, voltou 
E estamos os dois falando 
O que se não conversou 
Isto acaba ou começou? 

Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"

mãe e filho, bairro muçulmano, Delhi a velha. Índia



A Índia é um país grande. Não pela
extensão mas porque é antigo. O tempo, num
país inteligente, é a extensão mais significativa.
Milhares de metros quadrados ocupam, em teoria,
uma superfície importante.
Também o número de andares dos edifícios
é facto bem visível das janelas dos aviões.
Porém, é a História de um país
que dá a intensidade da ligação da árvore à terra.
E cada país é uma árvore.

"Uma Viagem à Índia", Canto VII, 17
Gonçalo M. Tavares

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

domingo, 4 de fevereiro de 2018

casas móveis. Dorze, Etiópia


PPS: Vou mudar de casa e não sei para onde vou. Isso enche-me de esperança

Arundhati Roy in "O Ministério da Felicidade Suprema"

guerreiro, viagem medieval de Santa Maria da Feira


Retrato do Herói

Herói é quem num muro branco inscreve 
O fogo da palavra que o liberta: 
Sangue do homem novo que diz povo 
e morre devagar de morte certa. 

Homem é quem anónimo por leve 
lhe ser o nome próprio traz aberta 
a alma à fome fechado o corpo ao breve 
instante em que a denúncia fica alerta. 

Herói é quem morrendo perfilado 
Não é santo nem mártir nem soldado 
Mas apenas por último indefeso. 

Homem é quem tombando apavorado 
dá o sangue ao futuro e fica ileso 
pois lutando apagado morre aceso. 

Ary dos Santos, in 'Fotosgrafias' 

o rapaz do frango, Begidro, Madagáscar


Quem não tem dinheiro para viver em cidades, não deve vir para cá - declarou um juíz do Supremo Tribunal, ao ordenar a expulsão imediata dos pobres da cidade.

Arundhati Roy in "O Ministério da Felicidade Suprema"

amigos, bairro muçulmano, Delhi a velha. Índia

"Mas tudo se passa como se os habitantes
da cidade fossem, em vez de crápulas,
substâncias entre o anjo e um material
que ao tacto seja semelhante ao veludo.
Contudo, se passares docemente a mão sobre
o rosto de alguém da nossa espécie
ficarás com a mão ferida. (...)"

"Uma Viagem à Índia", Canto V, 43
Gonçalo M. Tavares

barbeiro, bairro muçulmano, Delhi a velha. Índia



" (...) Numa única rua, um continente aperta-se

para que cada um possa vender o que tem."



"Uma Viagem à Índia", Canto VII, 19
Gonçalo M. Tavares

oficina, bairro muçulmano, Delhi a velha. Índia


"Só não se enterra uma máquina: nunca
tal foi visto. Há como que uma incompatibilidade
entre substâncias que dependem da electricidade,
por um lado, e a lama: um pormenor sujo do mapa. (...)"

"Uma Viagem à Índia", Canto V, 45
Gonçalo M. Tavares

sábado, 3 de fevereiro de 2018

na estação de Varanasi. Índia


Poema do Homem Só

Sós,
irremediavelmente sós,
como um astro perdido que arrefece.
Todos passam por nós
e ninguém nos conhece.

Os que passam e os que ficam.
Todos se desconhecem.
Os astros nada explicam:
Arrefecem

Nesta envolvente solidão compacta,
quer se grite ou não se grite,
nenhum dar-se de outro se refracta,
nehum ser nós se transmite.

Quem sente o meu sentimento
sou eu só, e mais ninguém.
Quem sofre o meu sofrimento
sou eu só, e mais ninguém.
Quem estremece este meu estremecimento
sou eu só, e mais ninguém.

Dão-se os lábios, dão-se os braços
dão-se os olhos, dão-se os dedos,
bocetas de mil segredos
dão-se em pasmados compassos;
dão-se as noites, e dão-se os dias,
dão-se aflitivas esmolas,
abrem-se e dão-se as corolas
breves das carnes macias;
dão-se os nervos, dá-se a vida,
dá-se o sangue gota a gota,
como uma braçada rota
dá-se tudo e nada fica.

Mas este íntimo secreto
que no silêncio concreto,
este oferecer-se de dentro
num esgotamento completo,
este ser-se sem disfarçe,
virgem de mal e de bem,
este dar-se, este entregar-se,
descobrir-se, e desflorar-se,
é nosso de mais ninguém.

António Gedeão

a fogueira crepita.Turmi, Etiópia



Crepita a fogueira...
Entre nuvens mais estrelas.
Fogos de artifício.

Fanny Dupré

tecnologia. Salvador, Bahia



Saudade da Bahia

Ai, ai que saudade eu tenho da Bahia
Ai, se eu escutasse o que mamãe dizia
Bem, não vá deixar a sua mãe aflita
A gente faz o que o coração dita
Mas este mundo é feito de maldade e ilusão
Ai, se eu escutasse hoje eu não sofria
Ai, esta saudade dentro do meu peito
Bem, se ter saudade é ter algum defeito
Eu pelo menos mereço o direito
De ter alguém com quem eu possa me confessar.

Ponha-se no meu lugar
E veja como sofre um pobre infeliz
Que tendo que desabafar
Dizendo a todo mundo o que ninguém diz

Veja que situação
E veja como sofre um pobre coração
Pobre de quem acredita
Na glória e no dinheiro para ser feliz

Dorival Caymmi

a estética. Atenas, Grécia


"(...) A estética terminou. Ficou o dinheiro.
Os homens são génios do bem para o ouro, 
génios do mal para a paisagem."

in "Uma Viagem à Índia" Gonçalo M Tavares

como uma criança. Chicago


Como uma Criança

Como uma criança antes de a ensinarem a ser grande, 
Fui verdadeiro e leal ao que vi e ouvi. 

Alberto Caeiro, in "Fragmentos"

sopro refrescante II. Chicago, Millenium Park.


A Frescura

Ah a frescura na face de não cumprir um dever! 
Faltar é positivamente estar no campo! 
Que refúgio o não se poder ter confiança em nós! 
Respiro melhor agora que passaram as horas dos encontros, 
Faltei a todos, com uma deliberação do desleixo, 
Fiquei esperando a vontade de ir para lá, que'eu saberia que não vinha. 
Sou livre, contra a sociedade organizada e vestida. 
Estou nu, e mergulho na água da minha imaginação. 
E tarde para eu estar em qualquer dos dois pontos onde estaria à mesma hora, 
Deliberadamente à mesma hora... 
Está bem, ficarei aqui sonhando versos e sorrindo em itálico. 
É tão engraçada esta parte assistente da vida! 
Até não consigo acender o cigarro seguinte... Se é um gesto, 
Fique com os outros, que me esperam, no desencontro que é a vida. 

Álvaro de Campos, in "Poemas"

girls. Viena, Austria.


All About Girls

Girls!
They protect you!
Mind you, correct you!
In ways you never thought of,
They enslave you, caress you!

You do whatever they say,
Sometimes they confuse you!
Right then it gets real bad,
Misconceptions they kill you!

You give them all,
You're taken to the mall,
Spend all your money,
Until you fall!

They flirt, tiny skirts!
Eyes blink, you're alert!
Black magic, their mastered skill!
New guys like contraception pills!

Some naughty, some innocent,
What lies deep inside,
Is the killer sense!
Oh they messed me up!

Damn I now trust this bub,
Sitting here golden cheers!
Girls! Girls! Girls!

Fiazio

algumas proposições com crianças. Guatemala



Algumas Proposições com Crianças

A criança está completamente imersa na infância 
a criança não sabe que há-de fazer da infância 
a criança coincide com a infância 
a criança deixa-se invadir pela infância como pelo sono 
deixa cair a cabeça e voga na infância 
a criança mergulha na infância como no mar 
a infância é o elemento da criança como a água 
é o elemento próprio do peixe 
a criança não sabe que pertence à terra 
a sabedoria da criança é não saber que morre 
a criança morre na adolescência 
Se foste criança diz-me a cor do teu país 
Eu te digo que o meu era da cor do bibe 
e tinha o tamanho de um pau de giz 
Naquele tempo tudo acontecia pela primeira vez 
Ainda hoje trago os cheiros no nariz 
Senhor que a minha vida seja permitir a infância 
embora nunca mais eu saiba como ela se diz 

Ruy Belo, in 'Homem de Palavra[s]'

musica, Marraquexe, Marrocos



"(...) Com facilidade distingue a música obesa
da outra, da simples, da que aparece num ponto
e vai directamente para o destino, sem adjectivos
sonoros. Quem ouve boa música merece
- diria um optimista - 
nascer noutra vida como flor (...)

in "Uma Viagem à Índia" Gonçalo M Tavares

tambor da banda. Trebilhadouro


Tambor da banda que não há

Tambor da banda que não há
Toca sempre, toca já,
Toca duro, toca louco,
Toca achando sempre pouco
O que tocas - tão, tão, tão,
Toca, que tocar é vão!
Toca até partir quem és
E que ao tom que em ti houver
Dançam outros - é sua vez! -
Toca que é o teu dever!
Toca! tão, tão, tão, tão,
Toca, que és meu coração!

Fernando Pessoa [23-6-1934]

os amigos. Índia


(...) Ou são perfeitos, os amigos,
ou são perigosos. São perigosos, portanto.

"Uma Viagem à Índia", Canto VIII, 55
Gonçalo M. Tavares

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

mulher bandari, mercado de Minab, Irão


A máscara é usada para ajudar as mulheres a manter a pele clara, agindo como um protetor solar no verão. A temperatura ultrapassa os 45 graus em vários meses do ano. Os homens do sul preferem compleixões pálidas. A pele negra é uma lembrança dos escravos que vieram da África através do Sudão.
As mulheres mais velhas nunca retiram a máscara na presença de estranhos, seja em sua casa ou no espaço público. A máscara não impede as mulheres de socializar e falar com homens - o Irão não é o "arabistão", nome como a Arábia Saudita é conhecida entre os persas.
Na região de Minab, usar máscara é "obrigatório". Especialmente entre os Baluch, um grupo étnico conservador que se encontra no Irão, Paquistão e Afeganistão.

sidra, Oviedo, Astúrias


"La relación de Oviedo y la sidra se pierde en la historia, aunque injustamente algunos se olviden de la misma. (...) Hasta la aparición del vaso y la botella de sidra, la misma se consumía en zapicas, xarres y vasos de cerámica, especialidades estas últimas que van unidas a la población ovetense de Faro, en la parroquia de Limanes, desde donde afamados alfareros extendieron su buen hacer a muchos otros alfares asturianos.

Hasta tal punto Oviedo es sidrera, que su primer alumbrado público, ideado por el profesor José Ramón Fernández de Luanco y Riego, procedía del aprovechamiento de la magaya de los lagares. Es la misma época en la que el farmacéutico ovetense D. José García Braga comercializaba, con notable éxito, la Sidra Ferruginosa de Asturias, recomendable para quienes padecían anemia y las mujeres embarazadas. (...)

Retirado de: www.sidreriavillaviciosa.com/productos/La~Sidra~en~Oviedo_646165.html